Centros de atendimento pedem registro do crime e até alvará judicial, mas legislação garante que palavra da mulher basta.
A interrupção da gravidez resultante de estupro é permitida no Brasil desde a década de 1940, mas, 75 anos depois, uma pesquisa inédita financiada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) mostra que a rede especial de assistência às vítimas ainda é precária.
No país todo, há 37 serviços voltados para o aborto legal, sendo que sete estados sequer contam com essa infraestrutura.
Há dez anos essa rede não passa por uma expansão. Além disso, alguns centros de atendimento fazem exigências fora da lei.
Os dados são da pesquisa “Serviços de Aborto Legal no Brasil — um estudo nacional”, à qual o GLOBO teve acesso.
De acordo com o trabalho, 94% das interrupções nessas unidades foram decorrentes de violência sexual.
Em 14% dos serviços analisados, as mulheres tiveram que registrar o estupro na delegacia e apresentar boletim de ocorrência para terem direito ao aborto. Em 11%, foi pedido parecer do comitê de ética da unidade de saúde.
E 8% dos locais só realizaram abortos mediante alvará judicial. A norma técnica do Ministério da Saúde estabelece que não é necessário nenhum documento de comprovação, sob o princípio da veracidade da palavra da mulher.
Para uma das autoras do estudo, a antropóloga Debora Diniz, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), são “vergonhosas” as exigências impostas pelos serviços de aborto legal no país.
A política pública diz que basta a palavra da mulher. Então, tudo o que aparecer fora da palavra da mulher, dentro de regimes burocráticos, judiciais ou policiais, são barreiras discriminatórias — defende Debora.
O estudo levantou os dados dos centros voltados para a interrupção da gestação nos três casos permitidos por lei: estupro, anencefalia e risco de morte para a mãe.
A pesquisa colheu dados registrados desde a abertura de cada serviço especializado. Segundo o trabalho, 2.442 mulheres fizeram aborto legal nesses locais desde que foram abertos.
O mais antigo é de 1994. A análise do prontuário de 1.283 pacientes assistidas nas cinco regiões brasileiras mostra que quase 40% têm até 19 anos.
Em cinco casos, as meninas tinham 10 anos ou menos. Só 10% das mulheres estão na faixa de 35 anos ou mais.
‘MULHER É APONTADA COMO QUEM MENTE’
Com experiência de 20 anos em serviços de aborto legal, o obstetra Olímpio Moraes explica os procedimentos a serem cumpridos.
Um deles é o ultrassom para verificar se o tempo da gestação confere com a data da violência relatada, além de atendimentos psicológicos e assinatura de documentos. Mas a dúvida sobre a veracidade da violência, segundo o médico, ainda é um grande obstáculo nos serviços.
Vem desse conceito patriarcal em que a mulher é apontada como quem mente. Aí fica aquela coisa: “essa história está estranha” ou “o que ela estava fazendo na rua?” — critica Olímpio. — Muitas vezes, os plantonistas se negam a fazer o procedimento e a mulher passa mais tempo internada do que deveria, por causa desse julgamento.
O governo federal lista 62 serviços de aborto legal em funcionamento, mas a pesquisa encontrou apenas 37 ativos. Alguns centros, embora no rol oficial na época do estudo, informaram que não haviam feito um aborto sequer.
Caso das maternidades Dr. Moura Tapajós, em Manaus; Benedito Leite, em São Luís; e Hospital Risoleta Tolentino Neves, em Belo Horizonte.
O Ministério da Saúde contesta esses dados. Afirma que o número de 62 serviços registrados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) como especializados “não exclui ou impossibilita a realização do procedimento em outras unidades do SUS que possuem serviços de obstetrícia”.
Segundo a pasta, entre 2010 e 2013, “230 estabelecimentos realizaram abortos legais no Sistema Único de Saúde, em todos os estados brasileiros”.
Em 2013, de acordo com o ministério, foram 1.523 interrupções, mas a pasta não especificou que parcelas desses procedimentos foram motivadas por anencefalia, risco de morte para a mãe ou violência sexual.
Entretanto, Olímpio, que é vice-presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) no Nordeste, vê uma estagnação na rede. Para o obstetra, diretor de uma maternidade pública em Recife (PE) que faz aborto legal, há um componente político forte.
É estranho ver uma Secretaria da Mulher que não pode tocar nesse assunto. Não há programas ou treinamento para profissionais.
O aborto legal está fora da pauta do governo, que se diz de esquerda, mas faz coligações com a parte mais atrasada da nossa República, ligada às bancadas religiosas — critica o obstetra.
A maior parte das mulheres que fizeram aborto legal na rede pública no período analisado é católica (43%), solteira (71%) e com ensino fundamental (35%) ou médio (37%). Metade (51%) se declara branca.
Segundo a pesquisa, 95% de todas as interrupções foram realizadas dentro do limite de 20 semanas. Os outros 5% se referem a casos de anencefalia, em que a lei permite o aborto depois desse prazo.
Mais da metade (52%) das 5.075 mulheres que procuraram os centros de atendimento no país não fizeram o aborto.
A falta de dados inviabilizou que a pesquisa identificasse o que ocorreu com elas. No Distrito Federal, onde 19 das 48 atendidas em 2014 interromperam a gestação, as razões variam, explica Fernanda Schieber, psicóloga do único serviço especializado da capital federal.
Em 16 unidades da Federação, entre as 20 que contam com serviço voltado para o aborto legal, o atendimento só está disponível na capital. Devido à distribuição desigual, mulheres de Minas Gerais, Mato Grosso e Piauí já procuraram o serviço do DF. Com a maior rede e a mais antiga, São Paulo respondeu por 90% do total de procedimentos analisados.
Foram registrados no Brasil 50.320 estupros em 2013, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública mais recente.
No entanto, pesquisas internacionais apontam que apenas 35% das vítimas procuram a polícia, o que elevaria a estimativa anual para 143 mil estupros no país. De acordo com a literatura científica, 5% das mulheres têm chance de gravidez após serem violentadas.
Para Rurany Ester Silva, coordenadora-geral de Programas e Ações de Saúde da Secretaria de Políticas para as Mulheres, a expansão dos serviços de aborto legal no país enfrenta a dificuldade de capacitação de profissionais, mas também resistências de cunho religioso.— Isso bate em barreiras religiosas, de aceitação dos direitos das mulheres — afirma Rurany.
Ela esclarece que ainda não teve acesso à pesquisa, que identificou 37 serviços ativos em 27 cidades, mas destaca que o número de 62 centros de aborto legal listados pelo Ministério da Saúde “já é insuficiente” para atender as mulheres.
Financiamos a pesquisa para entender como os serviços estão funcionando e, se for o caso, cobrar melhorias na política — diz a coordenadora da SPM.
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