Pesquisa realizada no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) da USP sugere que a transmissão psíquica de mães para filhas pode ser um fator que desencadeia e mantêm o transtorno do comportamento alimentar, mais particularmente a anorexia nervosa (AN).
O resultado foi obtido pela psicóloga Élide Dezoti Valdanha em estudo realizado com seis famílias de pacientes diagnosticados com AN em tratamento no Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares (GRATA) do HCFMRP.
De acordo com o estudo, o legado recebido inconscientemente da geração anterior tende a ser transmitido, não deixando espaço para que as mães criem seu próprio estilo de maternidade.
Para a pesquisadora, “o conhecimento das vinculações familiares inconscientes que permeiam a vida da pessoa com transtornos alimentares precisa ser disseminado entre os membros de equipe de saúde especializada no tratamento”.
Segundo ela, esses programas precisam “incorporar no plano terapêutico de forma sistemática e contínua” a atenção integral às famílias.
Do contrário, alerta, “não é possível avançar no tratamento sem incluir a família como recurso de enfrentamento.”
A psicóloga conta que trabalhou com três gerações de mulheres, avós, mães e filhas e que observou que os “padrões distorcidos” eram transmitidos na maneira com as mães exercem os cuidados maternos “cheios de conflitos e ambivalência afetiva”.
Eram cuidados primordialmente associados aos afazeres domésticos (cozinhar, lavar, passar roupa) e “cuidados concretos com o lar” (além da limpeza, aspectos financeiros e administrativos). Élide observou que esses cuidados eram valorizados em detrimento do cuidado emocional.
Pouco cuidado afetivo entre mães e filhas; restrição na expressão de emoções, limitação nos diálogos e pouca contenção de angústias.
“Avós e mães prestaram os cuidados tal como os receberam, sem consciência de que as filhas os percebem como invasões emocionais”. Outra observação feita por Élide é que muitas vezes as filhas “se sentiam desamparadas em suas necessidades afetivas mais significativas”.
Cuidado
Para a pesquisadora, ficou nítido que as mães analisadas cuidam de seus filhos do modo com foram cuidadas.
Uma dessas mães desabafou: “Eu acho que repeti com eles (filhos) muito das coisas que eu odiei na mamãe ter feito comigo, mesmo que objetivamente eu soubesse que não podia fazer aquilo”.
Élide conclui que o legado recebido da geração precedente tende a ser transmitido à geração posterior sem espaço para que as mães criem seu próprio estilo de exercitar sua maternidade.
Como essas mães e filhas vivem situações de conflitos e de falhas profundas no desenvolvimento emocional, o vínculo mãe-filha “mostra-se ambivalente e incapaz de perceber limite das individualidades, ora invadindo, ora evitando o contato”. Assim, diz a psicóloga, esses conteúdos psíquicos não são elaborados emocionalmente.
“Não podendo ser expressos em palavras e nem de ser objeto de diálogo do casal ou da família, esses conteúdos podem ser transmitidos às próximas gerações de maneira inconsciente, deixando marcas importantes.”
Conteúdos psíquicos não elaborados, conta a psicóloga, são muitas vezes problemáticos e podem acarretar sofrimento no núcleo familiar e até comprometer o amadurecimento emocional dos filhos.
Porém, lembra que “não se pode afirmar que as heranças transgeracionais causam diretamente os sintomas de transtornos alimentares”. É que eles são resultados de múltiplas causas.
“É no elo entre o que foi transmitido das gerações anteriores e sua atualização nas vivências atuais de cada família que são criadas as condições possíveis à emergência do sintoma”. diz. O sofrimento mental resulta das relações das ressonâncias do passado (não elaborado) no presente.
Para superar essa situação, a pesquisadora acredita na reorganização do sistema familiar de forma a proporcionar os cuidados necessários ao paciente, “atenuando as angústias familiares e criando possibilidades de elaboração do funcionamento psicodinâmico da família”.
A conscientização dos processos de transmissão familiar, garante a psicóloga, permite que os membros do grupo possam construir uma realidade diferente, ao invés de repeti-la indefinidamente, como nas gerações anteriores.
A pesquisa é resultado da dissertação de mestrado de Élide Dezoti Valdanha, realizada com orientação do professor Manoel Antonio dos Santos, do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.
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