“Nossa sociedade vai acolher as mulheres ou não? Nosso País é laico, e as decisões não podem ser baseadas em religião, devem levar em conta a saúde da mulher. Muitas estão morrendo em decorrência de abortos mal feitos. Eu me senti desamparada. Tive uma decisão muito madura para a época, mas me virei sozinha. Fiz tudo sozinha e assumi as consequências. Felizmente eu dei sorte.”
O relato é da jornalista Fernanda*, 30 anos, de Campinas, interior de São Paulo, que aos 17 fez um aborto. Passados 13 anos, a legislação brasileira pouco avançou, e hoje a interrupção da gravidez é permitida em três situações: quando não há outro meio de salvar a vida da mulher; quando a gravidez resulta de estupro; e quando há diagnóstico de anencefalia fetal.
Neste Dia da Mulher, comemorado no próximo domingo, os números do aborto no Brasil não deixam margem para celebração. Apesar da proibição, estima-se que sejam feitos 1 milhão de abortos ilegais por ano no País e que uma brasileira morra a cada dois dias vítima de procedimentos clandestinos. Em seu relatório “Abortamento Seguro”, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que, nos países onde a prática é ilegal, “muitas vezes o aborto seguro se torna um privilégio dos ricos, e as mulheres de baixa renda são mais suscetíveis a procurar métodos inseguros, que provocam a morte”.
Para a diretora de escola Luciana*, 36 anos, de Ubatuba, litoral de São Paulo, uma gravidez indesejada é uma falha, e as mulheres devem ter a chance de escolher. Ela, que já tem um filho de oito anos, fez um aborto em 2012.
“Claro que eu sou a favor do planejamento familiar, mas as pessoas são falhas. As mulheres são falhas, os homens são falhos. Não somos máquinas, não somos perfeitos. E as mulheres que abortam estão pagando com a própria vida por uma falha. Mas a gente esquece que muitos homens abortam. Porque é fácil a mulher levar uma gravidez adiante e o pai simplesmente abandonar a criança uma vez nascida. A mulher não pode abortar, mas o homem pode abandonar. É um aborto de bebê nascido. E a mulher não pode abortar um embrião.”
Veja, abaixo, o relato das duas mulheres:
Fernanda, 30 anos, jornalista
Eu estava no terceiro ano do colegial e fui passar o Carnaval com meu namorado na época. Fiquei bêbada, transei sem camisinha e engravidei. Quando fiz o exame de sangue e descobri, foi um pesadelo. Não queria de jeito nenhum. Não só porque não tinha estrutura para cuidar da criança, mas porque seria uma grande decepção para os meus pais.
Então comecei a ver formas de fazer o aborto. Ficava apavorada com a ideia de ter uma criança para o resto da vida. Tinha colegas que eram estudantes de enfermagem, peguei um livro e comecei a pesquisar remédios proibidos na gravidez por risco de aborto. Eu não podia dar a ela (criança) a vida que ela merecia ter.
Se dependesse do meu namorado, a gente teria tido. Mas ele também não tinha estrutura. Ele acabou contando para a família dele, e foi muito difícil. Chegaram a dizer que cuidariam da criança. Justamente por eu ser tão responsável, jamais deixaria meu filho com os outros. Não tinha condições e não queria empurrar para ninguém. Mas a partir do momento em que você está grávida, sua vida não importa mais, só a da criança. Então ele não participou de nada, não me apoiou de forma alguma. Eu estava sozinha nessa, só com duas amigas que me ajudaram, uma delas era até mais nova que eu. Tomei o remédio e foi tudo bem, só tive uma cólica bem forte. Eu tive sorte, muita sorte. Nunca tinha ido ao ginecologista e procurei um pra me certificar de que estava tudo certo.
Meus pais nunca souberam. Minha mãe é muito católica, seria uma grande decepção. Eu já não morava com meus pais e não queria voltar a ficar dependente, tinha medo de não conseguir fazer faculdade. Tenho amigas que engravidaram na adolescência e que conseguiram estudar. Então pensava que talvez pudesse ter sido diferente. Durante dez anos eu me lembrei disso todos os dias e me senti culpada. Mas a minha história era diferente, os meus pais são diferentes. Hoje sei que foi a melhor decisão. Se eu ficasse grávida atualmente, eu teria o filho. E eu penso em ter filho mais pra frente, ainda me acho nova. Penso em adotar e ter um filho biológico.
Luciana, 36 anos, diretora de escola
Foi em outubro de 2012. Eu estava me separando, em crise de separação. Meu ex-marido ainda estava em casa e andava muito nervoso, era muito grosseiro comigo. Então às vezes, pra dar uma aliviada na tensão, a gente transava. Em dez anos de casamento, teve momentos em que a gravidez poderia ter sido bem-vinda. Mas naquele momento não. Ele estava desempregado, e a nossa relação deteriorou muito em função disso também, de eu sempre tomar a frente das contas da casa. Eu me preocupava com grana e ele sempre bon vivant, surfando. Então, quando eu engravidei, ele ficou feliz e queria que eu tivesse. Queria, na verdade, se manter casado.
Mas eu rejeitei. Emocionalmente eu estava destruída. Ao mesmo tempo, eu adoro crianças e meu filho é a coisa mais fofa, mais incrível. Ele me pede um irmãozinho. Então a tomada de decisão foi dificílima. Ninguém é a favor do aborto. E eu era contra o aborto, porque eu não tinha passado pela situação. Eu não julgava quem abortava, sempre achei que fosse um direito da mulher, mas dizia que eu não faria. É essa culpa cristã que a gente tem.
Então fiquei com a ideia fixa do aborto e pensei: ‘não tenho escolha’. E comecei a pensar nas questões práticas, de como eu ia fazer. Durante esse tempo você não pode ouvir um bebê chorar. É uma rejeição muito grande. Meu ex-marido disse que não me ajudaria. A ideia de ir a uma clínica me assustava por várias questões: porque a gente sabe que há blitz em clínica, porque a gente sabe que tem médico que é açougueiro, porque a gente sabe que é caríssimo.
Até que eu encontrei uma ONG que foi a minha salvação, que me dava atenção 24 horas. Se eu tinha um pensamento negro, mandava um e-mail e me respondiam na hora. Porque a gente pensa muita coisa, pensa até em suicídio. A rejeição é muito grande, é muito forte. Eu acho que, além de ser psicológica e emocional, é até hormonal. É o seu corpo rejeitando e você não tem controle. 'Não vou ter, não vou ter, não vou ter. Prefiro morrer'.
Quando consegui o remédio, tomei e tive uma cólica muito forte e febre de 40 graus. Mas deu certo. Quando você vê que deu certo é uma mistura de sentimentos, mas o primeiro sentimento é de alívio. Fui a um hospital em uma cidade vizinha e nem precisei fazer curetagem. A mulher que me atendeu sacou na hora que não era um aborto espontâneo. Ela foi bacana e me mandou para casa, para repousar.
Não tive condição de contar para os meus pais. Minha mãe está cada vez mais velha e cada vez mais católica, para ela seria bem difícil aceitar e entender. Minhas irmãs souberam. Teve uma que me apoiou, outra nem tanto, até porque ela passou a vida tentando engravidar, está hoje com 44 anos e não engravidou. Então para ela foi chocante, foi difícil. Não penso em ter outro filho agora, mas não excluo a possibilidade de engravidar ou adotar se um dia eu estiver com alguém.
* nomes fictícios
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